top of page

Valor Econômico: "A saga sefardita do Recife para Manhattan"

Em novo livro, Lira Neto se debruça sobre a saga iniciada com a Inquisição que expulsa judeus da Península Ibérica para a Holanda e para o Brasil e, em 1654, leva 23 deles a atracar em Nova York

Maria Cristina Fernandes Valor, 12/02/2021

“Há 358 anos, um grupo de 23 refugiados judeus fugiu do Recife, Brasil, acossado pela intolerância e opressão. Para eles, a fuga marcou o fim de mais um capítulo de perseguição.” A declaração pública, assinada pelo então presidente americano no dia 1o de maio de 2012, foi distribuída naquela manhã aos jornalistas que faziam a cobertura da Casa Branca.

Nela, Barack Obama tomava partido numa contenda secular: “Mais de 300 anos depois que esses refugiados se estabeleceram pioneiramente em Nova Amsterdã [como então se chamava Nova York], celebramos o legado duradouro dos judeus americanos - dos milhões que cruzaram o Atlântico em busca de uma vida melhor, de seus filhos e netos, e de todos cuja crença e dedicação os inspira a alcançar o que seus ancestrais mal podiam imaginar”.

É bem verdade que Obama os trata por pioneiros e não “fundadores” de Nova York, como na lenda que, ao lado da anedota sobre a nascente do oceano Atlântico (a partir, é claro, da junção dos rios Capiberibe e Beberibe), compõe as blagues pernambucanas das grandezas idas e vividas.

Os jornalistas estavam mais preocupados com o paradeiro de Obama, que reapareceria naquela noite em Kabul. A efeméride só não passou batida para Lira Neto, que a recupera em “Arrancados da Terra” (Companhia das Letras). Em seu novo livro, Lira segue a máxima do historiador italiano Carlo Ginzburg e se diz movido pela “euforia da ignorância”.

Ele nada sabia sobre a saga dos judeus expulsos de Pernambuco com a restauração portuguesa no século XVII quando resolveu escarafunchar o tema. Da mesma forma, nunca havia se debruçado sobre Getúlio Vargas antes da trilogia de 2012. E mesmo os romeiros do Cariri, retratados em sua biografia de Padre Cícero, de 2009, eram de grande estranheza para quem nascera e se criara no litoral do Ceará.

A ideia inicial era fazer uma biografia de Maurício de Nassau, mas quando leu aquela de Evaldo Cabral de Mello (“Nassau”, Companhia das Letras, 2006), achou difícil ter o que acrescentar. Três anos depois, outro livro do historiador, “O Nome e o Sangue”, da mesma editora, lhe deu certeza do rumo que haviam tomado suas pesquisas. O livro fala dos cristãos-novos que, emigrados para Pernambuco, buscavam “limpar o nome” para esconder o sangue judaico e ascender na burocracia colonial.

Ao puxar o fio de sua ignorância, Lira descobriu até um ancestral, Gonçalo Novo de Lira, um cristão-novo que era fiscal do Santo Ofício, aderiu aos holandeses na ocupação, caiu em desgraça com a restauração, fugiu para o sertão e foi parar no Ceará. “Arrancados da Terra” começava a tomar forma.

Com o livro, Lira não pretendia comprovar fatos ou desmentir lendas, mas dar nome e sobrenome aos personagens envolvidos na saga e entrelaçar os dramas, os interesses e as paixões que envolveram os judeus da Península Ibérica desde as perseguições iniciadas pelas cruzadas no século XV.

O primeiro personagem da história de Lira é Gaspar Rodrigues Nunes, dono de uma pequena loja de pregos em Lisboa, vítima de delatores, como sua própria esposa, que recebiam comutações em suas penas se entregassem parceiros da fé maldita. Gaspar percorre todos os calabouços da Inquisição. Livra-se da fogueira, mas é enfiado num sambenito (túnica de linho amarelo sem gola ou manga) para mendigar na miséria. Reaparece, anos mais tarde, com outra família e o nome de Joseph ben Israel, numa procuração que conferia poderes a um agente para adquirir mercadorias num navio encalhado na costa francesa.

A procuração foi lavrada em Amsterdã, denominada de “Jerusalém do Norte” pela grande comunidade judaica que lá se formou. Se em Portugal eram “cristãos-novos”, os sefarditas, diz Lira, também receberam outra etiqueta na Holanda, o de “judeus novos”. O

segundo dos seus filhos, Manuel, rebatizado de Menasseh, foi matriculado numa escola judaica onde conheceria outro garoto refugiado da Inquisição, Isaac Aboab da Fonseca.

Ambos rivalizariam nos estudos bíblicos, sendo que Menasseh ganhou de lavada no desafio à ortodoxia das lideranças judaicas tradicionais de Amsterdã. Dedicou sua erudição para demonstrar que não havia um judaísmo satânico a conspirar contra a pureza da fé cristã pela simples razão de que as duas religiões originalmente convergiam sobre a criação da humanidade em quase tudo.

Essa ousadia o levou a perder, para Isaac, o cargo de primeiro rabino da Kahal Zur Israel (“Rocha de Israel”, em hebraico), fundada em 1637 no Recife. Menasseh, porém, se tornaria, décadas depois, um dos conselheiros de Oliver Cromwell, comandante da breve república inglesa. Colaborou para a readmissão dos judeus, banidos da Inglaterra desde o século XIII, abrindo caminho para a tolerância à comunidade sefardita egressa do Recife que se instalara na América do Norte.


Para continuar lendo, clique aqui (apenas para assinantes do Valor Econômico)

bottom of page